quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Lembranças adormecidas


Numa dessas surpresas que nos reservam as caminhadas pela cidade, deparei-me esta tarde com uma cena contrastante com a era tecnológica e futurista em que vivemos. Dois homens estavam retirando um monte de terra – restos de construção que estavam próximo ao passeio – e jogando dentro de um carroção. Para os mais modernos, carroção é uma carroça grande e reforçada, puxada por uma junta de bois. Tão acostumada com a modernidade, há tempos não via um. Não resisti. Voltei a casa e busquei minha câmera para registrar tal fato.
Essa visão transportou-me ao meu tempo de criança e trouxe-me lembranças adormecidas, mas nunca esquecidas. – Ocasião em que morávamos em um sítio no entorno da cidade. Lembranças de meu saudoso pai, que trabalhou, por um bom tempo, com um carroção idêntico. Ali carregava areia, lenha, milho, qualquer coisa que lhe ordenasse o patrão.
Registrado em minha memória, encontrei a figura daquele homem forte, semblante fechado, voz firme. Falava sempre com certa autoridade. Não foi acostumado com o agrado das palavras que acariciam a alma. Com aquela voz áspera e ar de contrariedade, talvez provocado pelo ardume do sol que castigava a pele e o olhar, ia conduzindo os bois pelas estradinhas irregulares do lugar e pelas ruas da cidade. Nem sempre havia alguém para ajudá-lo a guiar os bois. Seguia só, gritando com um boi, cutucando o outro, puxando-os para que voltassem para o caminho desejado. Por muitas vezes, ficava o dia todo nesse vaivém, transportando uma carga aqui, outra ali, até que o sol se punha no horizonte. Já não havia luz suficiente para iluminar os caminhos e o cansaço abatia sobre si mesmo e sobre os pobres animais, que aguentavam firmes aquela lida por demais cansativa.
Em sua sabedoria, sempre gostava de escolher os bois antes de prendê-los no cabeçalho do carroção e começar a lida. Tinham que ser bem aparelhados, semelhantes na força e na altura, para conseguir um equilíbrio satisfatório. Do contrario, um puxava mais que o outro, o carroção ficava inclinado e era contrariedade na certa. Lembro-me de ouvi-lo reclamar quando mandavam bois desiguais. Era o dia todo de penúria. Sofria o condutor; padecia os conduzidos.
Recordo-me de uma ocasião em que ele veio até bem pertinho de nossa casa para carregar uma lenha que havia sido cortada nos arredores. De longe pude perceber sua chegada pelo canto do eixo das rodas do carroção. Mais próximo, eram os gritos que anunciavam sua presença. Parou perto da lenha e logo chamou meu irmão para ficar à frente dos bois para que eles não continuassem o caminho. Gritou outro para ajudá-lo com a lenha. Foi gritando também que me pediu um copo d’água. À minha mãe, pediu um café quente para animar o corpo. Todos foram envolvidos naquela atividade. Pouco depois, tarefa terminada, seguiu seu caminho e por um bom tempo ainda ouvíamos aqueles sons para nós tão familiares.
Faz muito tempo que ele se foi. Sua imagem, que sempre me acompanha, voltou mais forte, hoje, quando presenciei aqueles dois cidadãos jogando a terra no carroção, conforme ele fazia. Igualmente forte veio a saudade daquele homem que não cheguei a conhecer em toda a sua essência, mas que ainda ocupa um lugar de destaque em minhas memórias.  Continuei o dia em companhia das lembranças daquele homem rústico que, em sua simplicidade, deixou uma marca bem grande em meu coração: meu pai. 
Luisa Garbazza
28 de fevereiro de 2013.





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