quarta-feira, 19 de outubro de 2011

“Irmão Sol, irmã Lua”

O mês de outubro principia majestoso, contemplado com um calendário repleto de datas comemorativas. Algumas se destacam e são até extremamente solenizadas. Mas uma em especial chama minha atenção. O dia 4. Entre outras celebrações, temos, neste dia, uma homenagem a São Francisco de Assis e, por extensão, à natureza.
Falar de São Francisco é trazer à memória imagens de uma doçura tão grande que deixam o coração aquecido ao imaginar o mundo como ele sonhou. Esse santo é muito conhecido por seu amor à natureza e às criaturas de Deus, tratando todos como irmãos: irmão vento, irmão sol, irmã lua, irmão lobo... Conheci sua história através do filme “Irmão Sol, irmã Lua” de Franco Zeffirelli. O filme é bem antigo, mas vez ou outra torno a apreciá-lo e sempre me emociono, tamanha beleza de sua essência.
Francisco, rapaz criado com muito luxo, acostumado a ter todas as vontades satisfeitas, nasceu em 1182, na cidade de Assis, província da Úmbria, no centro da Itália. O pai, Pietro Bernardone, foi um rico comerciante cuja preocupação maior era ajuntar tesouros. A mãe, Dona Pica Bernardone, uma mulher submissa como eram as de seu tempo, nutria pelo filho um amor muito grande e sempre recebia atenção e carinho de volta. O filho crescia já predestinado a tomar conta dos negócios do pai.
Incentivado pelo pai, Francisco partiu para uma guerra em busca de mais poder e título de nobreza. Mas os desígnios de Deus foram diferentes, como muitas vezes vemos acontecer em nossas vidas. Ele caiu prisioneiro, sofreu muito e voltou doente para casa. Permaneceu doente por um bom tempo e sua recuperação surpreendeu muita gente, principalmente o pai. Francisco era agora uma pessoa diferente. Deus entrou profundamente em sua vida e sua conversão aconteceu gradativamente.
Seu desprendimento das coisas mundanas, da riqueza e da fama foi tão grande, que quando o pai se opôs a seu novo jeito de viver, não teve dúvidas e abandonou tudo para viver na mais extrema pobreza. “Não ficou muito tempo sozinho. Gente nova o seguiu com fervor.” Aos poucos, seus amigos, presenciando aquela simplicidade e entrega total, foram aderindo ao seu projeto de vida. O que se sucedeu então é de uma ternura imensa. Uma vida completamente dedicada aos pobres, aos leprosos, que eram tratados com um carinho tão grande que enche a alma de quem toma consciência de sua história. É impossível não se sentir sensibilizado com imagens tão enternecedoras.
E em meio a tanta dificuldade, vividas com alegria, Francisco ainda tinha tempo para compor frases e orações que ficaram na história. Como esta: “Apenas um raio de sol é suficiente para afastar várias sombras”. Viveu assim, afastando as sombras da vida de muita gente abandonada.  E até hoje inspira outras pessoas a ingressarem na Ordem Franciscana e seguir uma vida de doação e humildade.
Mas, sua maneira de viver, tão digna e harmoniosa, ainda hoje aparece em contraste com este mundo em que o dinheiro e o poder imperam absolutos, marginalizando tanta gente nas beiras de estradas, nas favelas, nos abrigos e nas ruas. Em vez disso, deveria servir de exemplo para nós cristãos, indicando o caminho mais singular de nos aproximarmos do modelo expresso pelas palavras de Jesus quando disse: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus”.
Seria tão mais simples se, como São Francisco, valorizássemos mais as pessoas pelo que elas são e não pelo que elas têm. Se permanecêssemos em harmonia com a natureza, criação das mãos de Deus. Se vivêssemos intensamente nossa fé, ouvindo a voz de Deus, deixando-O agir em nós. Se abraçássemos esse modelo de vida tão singelo e tão completo. O que prevalece é o amor. Amor que iguala os filhos de Deus, que respeita suas obras e não se esquece nunca de dar graças por tudo e por todos.
Lembrando-me de São Francisco de Assis e de seus amigos jovens que, como ele, viveram para servir, penso nos jovens de hoje e concordo com o padre Zezinho nesta canção, bem antiga, mas de palavras tão belas como as que esse santo tão querido deixou: “Hoje em dia nos jovens que eu vejo / Irrequietos, num mundo infeliz, / Eu renovo a esperança e o desejo / De topar com Francisco de Assis. / Calça Lee, pé no chão, mundo novo, / Mil idéias de renovação.  / Ele são consciência do povo, / Queira Deus que eles cresçam irmãos.

Luisa Garbazza
* Crônica publicada no jornal "Paróquia" - outubro de 2011

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Livro na Praça


É impossível a quem passa pela praça da Matriz, em Bom Despacho, sábado pela manhã, não perceber o burburinho crescente, formado principalmente pelos feirantes que ali expõem seus artesanatos. Logo cedinho já se ouve o barulho dos ferros para a montagem das barracas. Em pouco tempo vê-se a feira montada, os produtos à venda, um tocador de violão ali, alguém fazendo um churrasquinho mais além.
Não demora muito e já começa a chegar toda “gente”, interessada em algum produto, um pouco de divertimento, ou apenas “dando uma olhada” básica e rápida, aproveitando a coincidência do caminho. Variedades de produtos são apresentadas aos passantes, desde roupas, bijuterias e coisas para casa até maravilhosas pinturas, em telhas, com motivos fascinantes.
No último sábado essa rotina foi enriquecida com a IX Feira de Livros de Bom Despacho. O evento contou com a parceria das meninas da biblioteca municipal, que montaram uma tenda com uns livros para incentivar a leitura e alguns para doação. Muitos levaram livro para casa. Outros, principalmente as crianças, puderam conhecer alguns dos que estão disponíveis na biblioteca para empréstimo.
O SESC também marcou presença. Oficinas de trabalhinhos manuais, balonagem e pinturas artísticas estiveram em evidência e fizeram a alegria da criançada. Muito louvável a habilidade dos jovens que desenvolveram essa atividade. Várias formas surgindo dos balões e imagens belíssimas nos rostos e braços de meninos e meninas que, sorridentes, deixavam a tenda e iam se exibir para pais, mães e amigos. Fiquei encantada com uma borboleta de asas azuis e pintas amarelas que vi despontar passo a passo no braço de uma criança.
 Mas o destaque maior foi para a tenda onde autores bom-despachenses expuseram seus livros. Quando passei por lá, tive o prazer de me encontrar com nosso ilustre escritor Jacinto Guerra, que, entre outros assuntos, escreve sobre vários aspectos do nosso povo e da nossa terra. Foi gratificante conversar sobre suas viagens e suas histórias. Mais ainda sentir seu entusiasmo pela literatura, o gosto pelas “letras” e a vontade de ver Bom Despacho crescendo nessa área, com um número cada vez maior de escritos e escritores, a atuação progressiva dos leitores e, consequentemente, a ascensão da cultura do lugar.
Ainda tive o privilégio de encontrar por ali o Dr. Celso, o Alexandre Cesário e Neiva Garbazza, todos escritores bom-despachenses, comprometidos com a arte das artes, esses, que fazem da palavra seu instrumento de trabalho.
É gratificante participar de um evento como esse. No mundo informatizado em que vivemos, onde o virtual abrange tudo e atinge todos, os livros foram deixados de lado. Chamar a atenção, principalmente dos jovens, para os livros e para a leitura é tarefa complicada. Ler chega a ser um “palavrão” no vocabulário de quem se acostumou com tudo virtual, pesquisas e resumos de livros prontos na internet e palavras entrecortadas no MSN. O visual é tudo. Um livro “cheio de letras” não é atrativo para essa clientela.
Por isso, urge uma maior conscientização de todos para o papel essencial do livro na história da humanidade. Somente com a participação de todos, crianças, jovens e adultos, leitores e escritores, pais e filhos, cidadãos em geral, chegaremos um dia a compreender a importância da cultura em nossa vida e em nosso desenvolvimento. ... e a existência humana será regida pela sensibilidade e pelo entusiasmo, permeada de histórias maravilhosas e de finais felizes.
                                                                          Luisa Garbazza
                                                                      11 de outubro de 2011

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Modernidade bucólica


No buliço do mundo moderno, a vida é bastante agitada e muitas cenas inusitadas acontecem naturalmente sem que ninguém, ou poucos, se deem conta. Nas ruas, então, o vai e vem é intenso e os movimentos, tanto dos veículos quanto das pessoas, acontecem de uma forma bem impessoal e automática. Algum olhar mais aguçado poderá flagrar cenas diferentes, engraçadas, simples e até emocionantes. Tive o privilégio de presenciar um momento ímpar desses na manhã do último sábado.
Fugindo um pouco da lida doméstica, aproximei-me da janela da sala, e, bem em frente, visualizei uma carroça parada do outro lado da rua. O cavalo, de pelo marrom claro, quase imóvel, estava devorando uma moitinha de capim que driblou as adversidades e brotou, teimosamente, em uma fresta do asfalto que recobre o chão.  
A imagem do condutor causou-me certa estranheza. Era um homem mais velho. Usava calça clara, bem surrada e camisa larga, também clara, de mangas compridas. Pelo pouco que aparecia do seu perfil, aparentava ter passado dos sessenta. Estava sentado no banco, com as costas encurvadas para frente e as pernas espichadas. Um chicote pendia de sua mão direita. O braço esquerdo estava dobrado e a mão encostada na cabeça, na orelha mais especificamente, como se aliviasse o peso para um momento de descanso. Um chapéu de abas bem grandes protegia sua cabeça do sol, que, apesar de a manhã estar apenas começando, já castigava, deixando uma amostra de como o dia seria quente.
O momento seguinte foi de divagações. O que estaria fazendo ali aquele homem? Permanecia quieto permitindo ao cavalo degustar o capim de aparência viçosa, contrariando o tempo seco que estamos atravessando? Esperava por alguém da casa em frente? Era um vendedor – às vezes passavam na rua uns vendedores de verduras – esperando a chegada de algum freguês? Não sei. Por um instante, tive a impressão de que cochilava tamanha era sua imobilidade. Curiosa, fiquei esperando, para verificar o desenrolar de cena tão bucólica bem no meio da modernidade. 
A cena seguinte foi, no mínimo, inesperada. Após alguns minutos de completa inércia o homem começou a se mover. Lentamente, ele desceu a mão que havia permanecido por um longo tempo na cabeça. Então pude perceber que segurava... um celular! Ah! Soltei uma exclamação quando desvendei o mistério. Essa imprevista revelação trouxe-me de volta à realidade. Os indícios de bucolismo estavam apenas na aparência: a roupa de camponês, o chapéu de abas largas, a carroça, a lentidão, sem se importar com a correria à sua volta. Detalhes trazendo-me à mente lembranças de minha infância que ainda povoam meu universo, inspirando instantes de melancolia. Mas a realidade era bem outra. É a globalização presente em todos os cantos do mundo. Ninguém quer ficar por fora. Acompanhar a evolução passa a ser, muitas vezes, mais importante que o próprio bem-estar. Quantas pessoas não possuem sequer um lugar decente para morar, porém o celular, quase sempre de ponta, está à mão para exibir em rodinhas, na escola, para a namorada...
Então, vagarosamente, o homem desligou o aparelho e guardou-o no bolso. Puxou a rédea alertando o cavalo, que levantou o pescoço contrariado por ver interrompida sua refeição. No momento seguinte, nosso personagem levantou o chicote e estalou-o no ar. O cavalo começou a se movimentar e, impulsionado pelo condutor, saiu trotando pela rua acima, sem nenhuma pressa. 
                                      Luisa Garbazza
                                                   03 de outubro de 2011