segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Modernidade bucólica


No buliço do mundo moderno, a vida é bastante agitada e muitas cenas inusitadas acontecem naturalmente sem que ninguém, ou poucos, se deem conta. Nas ruas, então, o vai e vem é intenso e os movimentos, tanto dos veículos quanto das pessoas, acontecem de uma forma bem impessoal e automática. Algum olhar mais aguçado poderá flagrar cenas diferentes, engraçadas, simples e até emocionantes. Tive o privilégio de presenciar um momento ímpar desses na manhã do último sábado.
Fugindo um pouco da lida doméstica, aproximei-me da janela da sala, e, bem em frente, visualizei uma carroça parada do outro lado da rua. O cavalo, de pelo marrom claro, quase imóvel, estava devorando uma moitinha de capim que driblou as adversidades e brotou, teimosamente, em uma fresta do asfalto que recobre o chão.  
A imagem do condutor causou-me certa estranheza. Era um homem mais velho. Usava calça clara, bem surrada e camisa larga, também clara, de mangas compridas. Pelo pouco que aparecia do seu perfil, aparentava ter passado dos sessenta. Estava sentado no banco, com as costas encurvadas para frente e as pernas espichadas. Um chicote pendia de sua mão direita. O braço esquerdo estava dobrado e a mão encostada na cabeça, na orelha mais especificamente, como se aliviasse o peso para um momento de descanso. Um chapéu de abas bem grandes protegia sua cabeça do sol, que, apesar de a manhã estar apenas começando, já castigava, deixando uma amostra de como o dia seria quente.
O momento seguinte foi de divagações. O que estaria fazendo ali aquele homem? Permanecia quieto permitindo ao cavalo degustar o capim de aparência viçosa, contrariando o tempo seco que estamos atravessando? Esperava por alguém da casa em frente? Era um vendedor – às vezes passavam na rua uns vendedores de verduras – esperando a chegada de algum freguês? Não sei. Por um instante, tive a impressão de que cochilava tamanha era sua imobilidade. Curiosa, fiquei esperando, para verificar o desenrolar de cena tão bucólica bem no meio da modernidade. 
A cena seguinte foi, no mínimo, inesperada. Após alguns minutos de completa inércia o homem começou a se mover. Lentamente, ele desceu a mão que havia permanecido por um longo tempo na cabeça. Então pude perceber que segurava... um celular! Ah! Soltei uma exclamação quando desvendei o mistério. Essa imprevista revelação trouxe-me de volta à realidade. Os indícios de bucolismo estavam apenas na aparência: a roupa de camponês, o chapéu de abas largas, a carroça, a lentidão, sem se importar com a correria à sua volta. Detalhes trazendo-me à mente lembranças de minha infância que ainda povoam meu universo, inspirando instantes de melancolia. Mas a realidade era bem outra. É a globalização presente em todos os cantos do mundo. Ninguém quer ficar por fora. Acompanhar a evolução passa a ser, muitas vezes, mais importante que o próprio bem-estar. Quantas pessoas não possuem sequer um lugar decente para morar, porém o celular, quase sempre de ponta, está à mão para exibir em rodinhas, na escola, para a namorada...
Então, vagarosamente, o homem desligou o aparelho e guardou-o no bolso. Puxou a rédea alertando o cavalo, que levantou o pescoço contrariado por ver interrompida sua refeição. No momento seguinte, nosso personagem levantou o chicote e estalou-o no ar. O cavalo começou a se movimentar e, impulsionado pelo condutor, saiu trotando pela rua acima, sem nenhuma pressa. 
                                      Luisa Garbazza
                                                   03 de outubro de 2011

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