sábado, 26 de julho de 2025

De trilha em trilha

 


Morávamos em um sítio bem espremido entre fazendas e uma indústria de siderurgia. Família de prole numerosa: pai, mãe e 10 filhos. Uma escadinha de crianças, conforme se diz aqui por estes lados do país. A criançada se divertia na área do sítio e nos arredores. Era uma verdadeira aventura a cada dia.

As saídas do sítio eram todas por meio de trilhas, a maioria ladeada por árvores frondosas: trilha para ir à cidade, trilha para ir às casas dos vizinhos, trilha para ir à mina buscar água para beber, trilha para ir à escola... Quando saíamos todos, ou vários, formava-se uma fila e caminhávamos acompanhando o ritmo do cabeça. Pela falta de energia elétrica, raramente saíamos após o entardecer. Esse momento era reservado para reuniões familiares, muitas vezes em volta de uma fogueira. Cada noite um momento diferente. Ora brincadeiras de corre-corre, ora de roda, ora de esconde-esconde... Ou então, a hora das histórias. Nossa mãe possuía o dom de contar histórias: reais ou imaginárias, reproduzidas ou inventadas. Os olhos da meninada brilhavam com as narrativas. E se arregalavam com as façanhas da mula sem cabeça e do enigmático saci-pererê. A mula sem cabeça era vista com respeito e com medo; o saci-pererê, com curiosidade.

O efeito desses dois seres do nosso folclore na vida da criançada era enorme. Nas noites escuras, sem luar, quando ficávamos na cidade até mais tarde, a volta era penosa. Nas trilhas que nos conduziam a casa, o medo reinava. Medo do que poderíamos encontrar pelo caminho. – E se aparecesse a mula sem cabeça botando fogo pelas ventas? – Nesse estado de tensão, ninguém queria ser o primeiro da fila, muito menos o último. A volta tornava-se longa demais. Na pressa de sairmos do negrume da noite, às vezes até tropeçávamos uns nos outros, quando o da frente dificultava os passos. A chegada era sempre motivo de grande alívio.

No dia a dia, na lida da vida, ocorria de sairmos à tardezinha, para fazer visitas ou pedir emprestado algum gênero de primeira necessidade nos vizinhos – sempre distante – ou para buscar água na mina. Algumas vezes, era necessário alguém sair sozinho. As sombras da tarde, que iam se espalhando, cobrindo tudo muito rápido para a chegada da noite, causava calafrios e traziam à tona o medo dos seres mitológicos. Aí o inevitável acontecia...

Certa noite, a irmã mais velha, que havia saído para pedir açúcar emprestado, chegou a casa sem fôlego, sem conseguir falar, branca como cera. E por algum tempo, assim permaneceu. Quando conseguiu balbuciar alguma coisa, aguçou nossa curiosidade. Aos poucos começamos a entender o que havia se passado.  “Avistei uma mulher estranha... ela esticava e encolhia. Olhava para um lado e a mulher estava lá, pequena igual anã. Aos poucos, ela ia se espichando e ficava mais alta que as árvores. Depois aparecia do outro lado, bem à frente, e ficava encolhendo e espichando. E assim durante todo meu caminho. Quase morri de medo!” Daí em diante, a mulher “que espicha e encolhe” foi alvo do medo da criançada. Quem saía ao entardecer já ia com os olhos arregalados, temendo encontrá-la pelo caminho.

Na semana seguinte, quando a tal mulher já começara a cair no esquecimento, o caso se repetiu, em outras proporções. Chegaram dois irmãos, que saíram à noitinha para buscar água. Estavam muito assustados! Nas vasilhas, apenas um pouco de líquido. A mãe indagou: “Onde está a água? O que aconteceu?” Com a respiração ainda ofegante, um deles respondeu: “Pegamos a água, mamãe. Mas, quando a gente voltava, vimos uma mulher vestida de branco em cima de uma árvore. Ela abria e fechava os braços, chamando a gente. Corremos de medo, tropeçamos e deixamos a água cair.” Vários pares de olhos se arregalaram ao mesmo tempo.

A vida no sítio seguiu plena, com suas histórias, seus passeios noturnos, seus medos. A mulher de branco, esta não caiu no esquecimento muito fácil não. Apareceu novamente, também para outras crianças, por um longo tempo.

Luisa Garbazza

2025

 

Um pouco das minhas lembranças de infância.

(A foto, tirada recentemente, é de uma das trilhas por onde andávamos.)


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